14 Julho 2023
Em dez dias passou dos pampas argentinos aos altos patamares da Igreja: primeiro o cargo de prefeito da Doutrina da Fé, depois no domingo a nomeação como cardeal. Uma ascensão em tempo recorde para o ex-arcebispo de La Plata, Victor Manuel Fernandez, nascido em 1962, que o Papa quis entre os sucessores de Joseph Ratzinger no gabinete do Santo Ofício para reformá-lo - mesmo que o dicastério esteja hoje rebaixado no organograma da Cúria após a constituição Praedicate evangelium do ano passado, numa perspectiva mais de promover e aprofundar a ortodoxia do que a defendes. Mesmo em temas delicados, como padres casados, homossexuais e mulheres – todos temas presentes na agenda de trabalho do Sínodo de outubro – sobre os quais o novo prefeito certamente não tem ideias tradicionalistas.
A entrevista é de Giovanni Panettiere, publicada por QN, 12-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como promover a fé num Ocidente cada vez mais indiferente à religião?
É uma indiferença relativa, porque sempre nascem novas formas de religiosidade e espiritualidade. A certa altura, quando se percebe o sufocamento da superficialidade, propõe-se novamente a questão da religião. Esse é o momento em que, se estivermos atentos, podemos iniciar um diálogo fecundo.
O senhor ainda percebe no mundo a necessidade de ouvir palavras de esperança sobre dor, morte, vida eterna e a Igreja ainda tem condições de enfrentar essas questões, antigamente definidas ‘novíssimas’?
Hoje tudo é imediato, urgente, por isso é difícil que surja uma proposta de vida eterna. Porém, diante da dor, da morte, do fracasso, do abandono, muitos começam a olhar para o horizonte mais amplo da existência. Faz parte da nossa mensagem e não podemos deixar de falar do chamado a uma vida plena e sem fim no abismo do amor divino. Às vezes essa mensagem é ignorada, mas em outras circunstâncias ela é ouvida.
A compreensão mais profunda da doutrina passa também pela superação da homossexualidade como 'objetivamente desordenada', uma definição do Catecismo que continua a ferir aqueles que vivem uma condição sexual não escolhida e também de seus familiares?
Esse é um problema da linguagem teológica, que às vezes ignora o efeito que pode ter no coração das pessoas, como se fosse indiferente à dor que produz. Mas, como vocês sabem, este não é o caso do Papa Francisco, que sem dúvida usaria outra linguagem.
Abençoar casais homossexuais é um sacrilégio para os círculos tradicionalistas. Eles citam a Bíblia com conhecimento dos fatos?
Existem textos bíblicos que não devem ser interpretados de forma 'material', quero dizer 'literal'. A Igreja tem há muito entendido a necessidade de uma hermenêutica que os interprete em seu contexto histórico. Isso não significa que percam seu conteúdo, mas que não deveriam ser tomados completamente pelo seu valor nominal. Caso contrário, teríamos que obedecer ao mandamento de São Paulo que exige que as mulheres cubram a cabeça, por exemplo.
E o que o senhor gostaria de dizer às católicas decepcionadas com a paralisação da reflexão sobre o acesso das mulheres ao diaconato, mesmo que permanente, apesar de algumas comissões ad hoc instituídas pelo Papa?
Vou dizer que não servirá analisar esse problema isoladamente. O que está por trás, e é muito mais profundo, é o discurso sobre o poder na Igreja e sobre o acesso das mulheres aos lugares onde há um poder de decisão. Por isso é importante que as mulheres comecem a votar no Sínodo.
A eventual ordenação de homens casados, defendida por ampla maioria no Sínodo sobre a Amazônia, abala a doutrina ou é uma hipótese possível para a Igreja?
É uma hipótese possível, como aliás acontece no Oriente. Mas essa é uma decisão prudencial que o Papa deve ponderar.
O que o senhor espera do Sínodo dos Bispos em outubro?
Diferentemente de outros Sínodos, durante os quais esperava respostas muito concretas, neste caso prefiro esperar para ver aonde o Espírito quer nos levar.
Incomodam o senhor as injúrias, até mesmo no plano pessoal, que lhe foram dirigidas pelos ambientes tradicionalistas?
Esperava por isso, mas não são aquelas que mais me preocupam. Existem outros espaços em que se articulam operações para prejudicar a imagem das pessoas, quando não respondem aos seus interesses ideológicos e econômicos. Nesses casos, a mensagem social de Francisco é incômoda. Não são exatamente setores tradicionalistas.
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"Padres casados? É possível". Entrevista com dom Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU